Procurei uma das mães que participam da comunidade.
"Séeergia!", gritou uma voz de moça do outro lado da linha
telefônica, em Belém, no Pará. Era Nathália Cal Meira Mattos, de 14 anos,
autista. Sua mãe, a advogada Ana Sérgia Rodrigues Cal, disse que o grau de
autismo da menina é leve. "Hoje a gente quase não diz que há algo diferente
com ela. É supervaidosa. Faz balé, estuda desenho e quer trabalhar com
histórias em quadrinhos." Mas, quando a garota tinha 7 anos, uma
neurologista da cidade afirmou que Nathália tinha "uma doença progressiva,
sem cura, que levaria à automutilação e inviabilizaria o convívio social".
Esse prognóstico só ocorre em casos muito graves. É como se, na presença
de um tumor, antes de saber se ele é cancerígeno, o médico recomendasse
quimioterapia e aconselhasse o paciente a fazer seu testamento. É assim que
muitas vezes o autismo é tratado no Brasil. Esse derrotismo é um dos principais
inimigos da criança. Na maioria das vezes, o autista demandará cuidados a vida
toda, mas ele sempre pode se desenvolver se for tratado corretamente. "Eu
fico impressionado com o desenvolvimento das crianças com autismo nos Estados
Unidos", diz o psiquiatra infantil Marcos T. Mercadante, professor da
Universidade Federal de São Paulo e da pós-graduação da Universidade Mackenzie.
O mais famoso caso de um autista adaptado à vida em sociedade é o da
engenheira e bióloga Temple Grandin, autora deUma Menina Estranha
- Autobiografia de Uma Autista. Temple só falou aos 3 anos e meio,
usava as próprias fezes como massinha de modelar e reagia com violência a
pequenos sons. Já era adulta quando conseguiu olhar alguém nos olhos e tinha
mais de 30 anos quando deu a mão pela primeira vez a uma pessoa (autistas, em
geral, têm horror ao toque).
Seu livro é uma janela para um mundo misterioso: a mente do autista. Ela
conta que pensa por meio de imagens, e não de palavras. E que essa capacidade
de visualização a ajudou em sua profissão. Temple projetou boa parte dos
equipamentos mais modernos para ordenha e abate de gado.
Por não querer enxergar, muitos pais deixam seus filhos perder um tempo
precioso de terapia. A palavra autismo assusta. No imaginário popular, autistas
vivem isolados num mundo impenetrável, com um olhar perdido, se balançando
diante de uma parede, imunes a qualquer afeto. É um estereótipo baseado em
casos mais severos e comportamentos aparentemente sem solução de crianças nunca
tratadas. "Entre pais de autistas, costumamos nos referir ao dia do
diagnóstico como 'o dia em que o chão se abriu'", diz a advogada
Alessandra Camargo Ferraz, de 37 anos, mãe de Rafael.
Não levou quatro
minutos para eles fecharem o diagnóstico. Eu quis negar. Como podiam ter
certeza só de olhar para ele?
ALESSANDRA CAMARGO FERRAZ, mãe de
Rafael
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Para Alessandra, o chão se abriu quando Rafa tinha 15 meses. Ela já
desconfiava de algo estranho com o menino. Ele passava horas olhando o
movimento das luzes do equalizador do aparelho de som. "Mas autismo nunca
tinha me passado pela cabeça." O pediatra de Rafa percebeu o problema e
sugeriu que Alessandra e o marido procurassem o Centro Pró-Autista. "Não levou
quatro minutos para eles fecharem o diagnóstico. Eu quis negar. Como podiam ter
certeza só de olhar para ele? Quando cheguei em casa, sentei no computador e li
sobre os sintomas. Era o Rafa."
Não são apenas os pais que não querem ver. Parentes e amigos também.
"Quando eu dizia que o Rafa era autista, ninguém acreditava em mim."
Rafael, como a maioria dos autistas, tem o aspecto físico de uma criança
normal. Nem a expressão facial é diferente. A coordenação motora também é boa.
Só o comportamento é diferente.
Os preconceitos dos próprios médicos atrasam o diagnóstico. Quando a
carioca Claudia Marcelino estava na maternidade para ter sua segunda filha,
comentou com o obstetra que o menino mais velho, Maurício, talvez fosse
autista. Diante da criança de 4 anos, que andava de um lado para o outro
balbuciando sons ininteligíveis, o médico respondeu com uma repreensão.
"Ele disse que eu nunca tinha visto um autista", diz Claudia.
"Que não dissesse aquilo do meu filho." Maurício só foi diagnosticado
aos 7 anos e até hoje fala muito pouco. A mãe diz que passou por vários
médicos. Eles a mandavam aguardar, "porque cada criança tem o seu
tempo".
O que é tão especial no autismo que o torna difícil de reconhecer até
por médicos? Ele não é uma doença. A psiquiatria moderna o define como um
distúrbio do desenvolvimento. Algo de anormal acontece no processo de
desenvolvimento do cérebro. Quando, onde e por quê, ninguém sabe exatamente. Há
várias hipóteses. Uma não elimina a outra. Ao que tudo indica, o autismo seria
um distúrbio multifatorial - suas causas seriam múltiplas, e não
necessariamente as mesmas para duas pessoas.
Um forte indício da multicausalidade do problema é o fato de existirem
autistas tão diferentes entre si. Um autista pode ser superdotado ou ter deficiência
mental. Ser um exímio pianista ou não ter qualquer controle do movimento das
mãos. Incapaz de pronunciar uma palavra ou demonstrar total domínio das regras
gramaticais. Por isso, hoje não se fala mais tanto em autismo, e sim em
espectro autista. O espectro abrange uma série de distúrbios que vão do autismo
clássico, com retardo mental, à síndrome de Asperger, uma forma branda muitas
vezes associada a um Q.I. muito acima da média.
Os autistas mais comprometidos são chamados "de baixo
funcionamento". Os mais capazes de levar uma vida normal, "de alto
funcionamento". Nesse último caso, é possível ter uma vida independente,
como é o caso da cientista americana Temple Grandin ou de um paciente de
Salomão Schwartzman que trabalha como ilustrador.
Mas associar autismo à genialidade é um mito. "Hoje, é mania dizer
que autista é gênio, que Einstein e Newton eram autistas", diz Estevão
Vadasz. Alguns autistas realmente são capazes de feitos espantosos, como
decorar uma lista telefônica ou descobrir a mão de um jogador de pôquer em
segundos fazendo cálculos de probabilidades. "Eles têm ilhas de
habilidades."
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DIA A DIA
No Orkut, Claudia narra a rotina e as conquistas de Maurício, de 16 anos:
“Nós comemoramos juntos as vitórias de cada um”
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Vadasz cita Kim Peek, a pessoa que inspirou o filme Rain Man, com Dustin Hoffman e Tom Cruise. Aos 55 anos, o
americano conhece 12 mil livros de cor, mas não consegue abotoar a própria
camisa. "São os savants (sábios)", diz. "Antes eram conhecidos
como idiotas savants. Há criança com 20 de Q.I. que faz cálculos
incríveis." Segundo ele, essas habilidades dificultam o diagnóstico. E
tendem a desaparecer conforme a criança adquire outras capacidades.
Mesmo os autistas de baixo funcionamento são capazes de aprender muitas
coisas. Quem vê Adriana Delgado dobrando e pendurando roupas não imagina a
gravidade de seu caso. A moça trabalha na lavanderia do sítio da AMA, em
Parelheiros, periferia de São Paulo. Lá, fora as classes infantis, há uma ala
de internato também para adultos seriamente comprometidos.
Além de autismo de baixo funcionamento, Adriana costuma sofrer
convulsões. Como muitos autistas, ela tem uma síndrome associada. A dela é a
epilepsia. Outros têm síndrome de down, cegueira, surdez, esquizofrenia.
Segundo Schwartzman, 70% sofrem de retardo mental. Mas praticamente todos
conseguem aprender a comer sozinhos, usar o banheiro, dobrar as próprias
roupas. Parece pouco, mas esses avanços fazem diferença na qualidade de vida.
Na extremidade mais leve do espectro, os aspergers falam perfeitamente
bem. Bem demais, até, sem erros. "Eles só têm dificuldade de usar a
linguagem como meio de contato social", diz o neurologista Carlos Gadia.
Os obstáculos para a comunicação são sua indisposição ao contato e o foco de
interesse restrito. Eles podem discorrer horas sobre dinossauros, relações
matemáticas ou determinado período histórico, mas não conseguir cumprimentar os
vizinhos.
A existência dos aspergers só foi reconhecida em 1993. Antigamente eles
eram considerados esquisitões. "Estão esticando o espectro", diz
Schwartzman. "Daí a idéia de epidemia. Como o diagnóstico é clínico, ele é
relativo. Um paciente pode sair do meu consultório como gênio e do consultório
de outro médico como asperger."
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77644-8055-473-2,00-UM+NOVO+OLHAR+SOBRE+O+AUTISMO.html